Quando as máquinas serão autoras?
Um Ensaio Sobre a Interdependência Humano-Máquina e o Futuro da Criatividade
A questão central deste ensaio é se (e quando) as máquinas serão reconhecidas como autoras de suas próprias criações. Esse debate, antes restrito à ficção científica e à filosofia especulativa, tornou-se uma preocupação concreta. Modelos de inteligência artificial não apenas simulam a linguagem humana, mas também criam textos, imagens, músicas e até códigos de software com qualidade comparável à produção humana. Se uma IA gera uma obra que não pode ser claramente atribuída a um criador humano, devemos reconhecer essa máquina como autora?
Atualmente, as leis de direitos autorais ao redor do mundo afirmam que apenas humanos podem ser autores. Mas essa limitação é um princípio essencial da autoria ou apenas uma convenção temporária? Afinal, houve um tempo em que questionávamos se fotografias e vídeos poderiam ser considerados arte, pois "a máquina fazia tudo sozinha". Hoje, ninguém duvida da autoria de um fotógrafo, mesmo que sua câmera possua um sistema avançado de captação e edição automática.
Essa reflexão nos leva a uma questão ainda mais profunda: se a autoria é consequência da intenção criativa, podemos atribuir intenção a uma máquina?
Criação sem Criador?
A filosofia há muito tempo debate a relação entre criatividade, intenção e autoria. Jean-Paul Sartre argumentava que a criatividade é um ato de liberdade, pois envolve a escolha de expressar algo no mundo. A IA, por mais avançada que seja, não faz escolhas de forma autônoma—ela apenas recalcula probabilidades com base em padrões matemáticos. Isso significa que sua "criatividade" é, na verdade, um reflexo das intenções humanas, embutidas em seu treinamento e programação.
Byung-Chul Han, em A Crise da Narração, analisa como a sociedade contemporânea está perdendo a capacidade de criar e apreciar narrativas significativas. Em um mundo saturado por dados e informações geradas mecanicamente, a distinção entre criador e máquina começa a se dissolver. A IA pode gerar narrativas que parecem originais, mas sem um sujeito que lhes atribua significado. Criatividade, argumenta Han, não é apenas a produção de algo novo, mas a construção de sentido. Se a IA não consegue construir sentido, então talvez ela não seja uma autora—apenas um espelho que reflete fragmentos recombinados da criatividade humana.
Mas e se isso mudar? E se, no futuro, a IA for capaz de produzir obras tão inovadoras e inesperadas que nem seus programadores consigam prever os resultados? Será que, nesse momento, será razoável reconhecer a máquina como autora?
Quando as Máquinas Serão Consideradas Autoras?
Se aceitarmos que a autoria envolve intenção criativa e autonomia, podemos delinear alguns marcos para o momento em que as máquinas possam ser reconhecidas como autoras:
Autonomia Criativa Real: A IA precisaria tomar decisões criativas de forma não determinística, ou seja, sem ser completamente previsível, aproximando-se de um agente criador.
Capacidade de Atribuir Significado: A IA precisaria não apenas produzir conteúdo, mas também atribuir sentido a ele. Hoje, a IA gera textos e imagens, mas não compreende seu significado. Para ser considerada autora, precisaria entender sua criação dentro de um contexto maior.
Reconhecimento Cultural e Social: Autoria não é apenas um conceito técnico, mas também um fenômeno cultural. Se, no futuro, a sociedade passar a reconhecer criações de IA como legítimas expressões independentes, a legislação poderá se adaptar para refletir essa mudança.
Esses critérios sugerem que a IA ainda está longe de ser reconhecida como autora—mas esse momento pode chegar. E, quando chegar, teremos que redefinir não apenas o copyright, mas também nossa própria relação com a criatividade e o conhecimento.
Uma nova realidade para o trabalho intelectual
Enquanto esse futuro não chega, vivemos um momento de transição. A IA já faz parte do processo criativo humano, mas não substitui a criatividade humana. Isso cria um novo paradigma para o trabalho intelectual, que podemos chamar de híbrido cognitivo.
O híbrido cognitivo é a fusão entre a mente humana e a inteligência artificial, onde ambos desempenham papéis distintos, mas complementares. Esse modelo já está presente em diversas áreas: No Design e Publicidade: IA gera variações de layouts e conceitos, mas a decisão final é humana; Na Pesquisa e Análise de Dados: Algoritmos processam grandes volumes de informações, mas a interpretação e síntese são feitas por especialistas; Na Escrita e Jornalismo: Ferramentas de IA auxiliam na estruturação de textos, mas a autoria verdadeira surge na seleção das ideias e no tom pessoal de cada autor.
Isso nos leva à ideia de Mario Sergio Cortella sobre a Era da Curadoria. O trabalho intelectual do futuro não será apenas criar do zero, mas selecionar, interpretar e refinar conteúdos gerados por IA. O diferencial humano não será mais o volume de informação produzida, mas a capacidade de atribuir significado ao que já existe.
O humano cercado de tecnologia
O avanço da IA nos obriga a reavaliar a própria essência da criatividade. No entanto, ainda estamos longe de um mundo onde máquinas sejam verdadeiras autoras. Elas podem gerar conteúdos, podem até surpreender seus criadores, mas ainda lhes falta a consciência do que fazem e a capacidade de atribuir significado às suas criações.
Isso não significa que a interdependência humano-máquina seja trivial. Pelo contrário, estamos entrando em uma era onde o pensamento híbrido será a norma, e a forma como utilizamos a IA determinará nossa capacidade de inovar, criar e interpretar o mundo.
Talvez, um dia, as máquinas sejam reconhecidas como autoras. Mas, até lá, a grande questão não é se elas podem criar. A grande questão é: como os humanos continuarão sendo criadores em um mundo onde as máquinas são coautoras invisíveis de quase tudo o que fazemos?
A resposta não está em excluir a IA do processo criativo, mas sim em equilibrar essa relação, garantindo que a criatividade continue sendo um ato deliberadamente humano. Afinal, não se trata de humanos contra máquinas—trata-se de humanos com máquinas, e do que escolhemos fazer com essa interdependência.
Referências
Jean-Paul Sartre – O Ser e o Nada (1943)
Byung-Chul Han – A Crise da Narração (2023).
Mario Sergio Cortella – A Era da Curadoria (2015).
Atualização da Legislação sobre Direitos Autorais e IA – U.S. Copyright Office Report on Copyright and Artificial Intelligence, Part 2 (2025).
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