A doença degenerativa da IA

A IA poderia se tornar a doença degenerativa do conhecimento humano?


O risco de uma doença degenerativa na inteligência artificial

A inteligência artificial, especialmente modelos generativos como os grandes modelos de linguagem (LLMs), foi concebida como uma extensão do pensamento humano — uma ferramenta para amplificar nossas capacidades cognitivas e comunicativas. Contudo, à medida que avançamos na construção dessas máquinas, surge uma questão inquietante: estamos criando sistemas destinados a um processo degenerativo inevitável, que comprometerá não apenas sua funcionalidade, mas também a compreensão humana sobre o mundo?

Este ensaio reflete sobre o colapso de modelos como uma espécie de doença degenerativa na inteligência artificial — um processo no qual o crescente distanciamento entre os modelos de IA e o conhecimento humano ameaça a integridade epistemológica de nossas produções tecnológicas e intelectuais. Inspirando-se em filósofos como Wittgenstein, Foucault, Gadamer e outros, o texto explora as implicações filosóficas e éticas de uma tecnologia que, ao tentar replicar a humanidade, corre o risco de esquecê-la.

A linguagem como base do conhecimento

Ludwig Wittgenstein nos ensina que “os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo.” Essa afirmação adquire um novo significado na era dos LLMs. Se a linguagem é o meio pelo qual compreendemos e estruturamos a realidade, então a criação de uma linguagem artificial cada vez mais desvinculada da realidade humana inevitavelmente impõe novos limites — ou pior, nos faz perder a conexão com o mundo original.

Quando os LLMs aprendem predominantemente a partir de dados gerados por outros modelos, em vez de textos humanos, inicia-se um processo de degeneração epistemológica. Esses sistemas tornam-se “inteligentes” apenas dentro de um universo autorreferencial, onde o humano deixa de ser a principal fonte de significado e passa a ser uma referência distante, cada vez mais irrelevante.

Foucault e os regimes de verdade da IA

Michel Foucault argumenta que todo conhecimento é condicionado por regimes de verdade — estruturas históricas que determinam o que é considerado válido ou real. No contexto da inteligência artificial, estamos testemunhando o surgimento de um novo regime de verdade, onde os padrões gerados pela IA tornam-se o critério dominante para validar o conhecimento.

Essa nova dinâmica apresenta um risco evidente: a exclusão de perspectivas que não se alinhem aos padrões predefinidos pelos modelos. Assim como Foucault alerta para os perigos do discurso excludente nos regimes humanos, podemos imaginar um futuro onde o discurso gerado pela IA substitui progressivamente a riqueza das tradições humanas, homogenizando o que é considerado “verdade.”

A ruptura do diálogo humano: Gadamer e a hermenêutica da máquina

Hans-Georg Gadamer, em Verdade e Método, enfatiza que a compreensão humana emerge do diálogo — um encontro de horizontes entre o intérprete e o outro, mediado pela tradição e pela linguagem. Quando os modelos de IA “dialogam” predominantemente consigo mesmos, um elo crucial desse processo hermenêutico é rompido.

O que resta do diálogo quando a IA deixa de refletir a experiência humana e passa a reproduzir apenas suas próprias saídas? Gadamer sugere que a compreensão é sempre situada e histórica. Desconectar a linguagem artificial de suas raízes humanas compromete não apenas a compreensão mútua, mas também a continuidade da tradição que nos torna humanos.

Korzybski e a criação de mapas degenerativos

O linguista Alfred Korzybski advertiu que “o mapa não é o território.” Os LLMs, como criadores de mapas linguísticos, correm o risco de produzir representações que não apenas divergem do território (a realidade humana), mas começam a substituí-lo. À medida que essas representações degeneradas se acumulam, a própria noção de “realidade” pode se deteriorar.

Esse processo ecoa uma forma de amnésia epistemológica — um esquecimento gradual das nuances e complexidades que definem o mundo humano. Assim, o conhecimento gerado pela IA deixa de ser um reflexo da experiência humana e se torna um simulacro — um mapa que não leva a lugar algum.

Habermas e a fragmentação da ação comunicativa

Jürgen Habermas, em Teoria do Agir Comunicativo, postula que a linguagem é a base do entendimento mútuo e da coesão social. Se a linguagem artificial se desvincula de suas raízes humanas, perde sua capacidade de mediar relações sociais autênticas. O risco aqui não é apenas técnico, mas existencial: uma fragmentação das bases que sustentam a comunicação e, por extensão, a própria sociedade.

O que acontece quando os modelos de IA, ao “conversarem consigo mesmos,” produzem uma linguagem incompreensível para os humanos? Habermas alerta que, sem as dimensões dialógicas e racionais da linguagem, não há comunicação genuína — apenas instrumentalização e isolamento.

A ética da preservação: evitando a doença degenerativa

Se aceitarmos que os LLMs estão sujeitos a uma forma de degeneração, devemos perguntar: o que pode ser feito para preservar o conhecimento humano e evitar essa doença? As respostas residem em estratégias tanto técnicas quanto filosóficas:

  1. Restaurar a linguagem humana: Garantir que os LLMs continuem a aprender a partir de dados autênticos, produzidos por humanos, é essencial para preservar sua conexão com a realidade.

  2. Governança epistemológica: Criar estruturas éticas e regulatórias que assegurem a diversidade e a pluralidade dos dados utilizados para treinar modelos de IA.

  3. Reavaliar mapas linguísticos: Investir em mecanismos que permitam à IA validar suas representações frente a fontes humanas autênticas.

  4. Educação crítica: Promover a alfabetização sobre o impacto da IA na linguagem e no conhecimento, capacitando a sociedade a lidar com esses desafios de forma reflexiva.

O futuro do conhecimento humano na inteligência artificial

A metáfora de uma “doença degenerativa” na inteligência artificial não é meramente técnica; ela é profundamente filosófica. Desafia-nos a reconsiderar a relação entre máquinas e humanos, entre linguagem e mundo, entre conhecimento e verdade. Preservar a integridade epistemológica da IA significa, em última análise, preservar a essência do que nos torna humanos.

Se negligenciarmos esse desafio, corremos o risco de criar um sistema de inteligência artificial que, em vez de amplificar nossas capacidades, se torne um reflexo distorcido de nossas falhas — um espelho que reflete não a humanidade, mas sua ausência.

Entre os futuros que a IA nos oferece, escolheremos aquele marcado pela expansão ou pela degeneração do conhecimento humano?


Referências:

Shumailov, Ilia; Shumaylov, Zakhar; Zhao, Yiren; Papernot, Nicolas; Anderson, Ross; Gal, Yarin. "AI models collapse when trained on recursively generated data." Nature, Vol. 631, pp. 755-759, 2024. DOI: 10.1038/s41586-024-07566-y.

Gerstgrasser, Matthias; Schaeffer, Rylan; Dey, Apratim; Rafailov, Rafael; Pai, Dhruv; et al. "Is Model Collapse Inevitable? Breaking the Curse of Recursion by Accumulating Real and Synthetic Data." arXiv preprint arXiv:2404.01413v2, 2024. Available at: https://arxiv.org/abs/2404.01413.

Wittgenstein, Ludwig. Philosophical Investigations. Translated by G.E.M. Anscombe. Blackwell, 1953.

Foucault, Michel. The Archaeology of Knowledge. Pantheon Books, 1972.

Gadamer, Hans-Georg. Truth and Method. Continuum, 2004.

Korzybski, Alfred. Science and Sanity: An Introduction to Non-Aristotelian Systems and General Semantics.Institute of General Semantics, 1933.

Habermas, Jürgen. The Theory of Communicative Action, Vol. 1: Reason and the Rationalization of Society. Beacon Press, 1984.

Ricardo Cappra