Novas espécies criativas
Máquinas podem realmente criar ou apenas imitam a criatividade humana?
Repensando o ato de criar na era das máquinas
A criatividade, muitas vezes considerada um traço essencialmente humano, encontra-se em um ponto de inflexão à medida que as máquinas começam a demonstrar capacidades criativas próprias. No entanto, comparar a criatividade humana à das máquinas pode ser um erro semântico. Como Margaret A. Boden explora em seu artigo sobre criatividade e inteligência artificial, os processos criativos das máquinas não operam sob os mesmos parâmetros dos humanos, mas isso não invalida sua existência. Humanos e máquinas podem ser vistos como “espécies criativas”, ainda que radicalmente distintas em suas manifestações e fundamentos.
Criatividade: um fenômeno multiespécie?
Boden define criatividade como a capacidade de gerar ideias novas, surpreendentes e valiosas. Ela distingue entre criatividade psicológica (P-creatividade), que é nova para o sistema que a gera, e criatividade histórica (H-creatividade), que é inédita para toda a humanidade . Essa distinção é crucial, pois destaca que a novidade não precisa ser universal para ser considerada criativa; basta que seja nova dentro de seu contexto.
Quando aplicada à inteligência artificial, a P-creatividade se torna mais evidente, já que as máquinas podem combinar ideias familiares (criatividade combinacional), explorar espaços conceituais (criatividade exploratória) e, ocasionalmente, transformar esses espaços (criatividade transformacional) .
Comparar a criatividade humana à das máquinas, portanto, ignora as diferenças ontológicas entre as duas. A criatividade humana é profundamente influenciada por emoções, motivações e contextos culturais, enquanto a criatividade das máquinas opera em espaços conceituais pré-definidos, muitas vezes limitados por parâmetros computacionais. Boden nos convida a repensar a criatividade como um conceito plural e multiespécie, em vez de exclusivamente humano.
A Dialética da Criatividade: humano e máquina
Enquanto humanos recorrem a associações livres e intuições para criar, as máquinas seguem algoritmos e exploram espaços conceituais programados. A criatividade combinacional, como exemplificado pelo programa Jape, que cria trocadilhos, demonstra que as máquinas podem produzir algo novo, mas sempre dentro de estruturas cuidadosamente definidas . Boden reconhece que o humor gerado pelo Jape pode ser apreciado, embora raramente alcance o impacto emocional das criações humanas.
Por outro lado, a criatividade transformacional, que desafia e redefine os limites dos espaços conceituais, é o maior desafio para a inteligência artificial. Transformar um espaço conceitual requer um nível de autonomia que permita à máquina redefinir suas próprias regras . Nesse contexto, surge o papel do prompt como um ato criativo humano que aciona a criatividade da máquina de forma única.
O Prompt como catalisador criativo
O prompt é mais do que uma instrução para a máquina; ele é, em si, uma expressão criativa humana. Como Boden observa, as máquinas operam em espaços conceituais pré-definidos, mas é o humano quem frequentemente estabelece os contornos iniciais desses espaços, por meio de inputs como prompts. Entretanto, a máquina não se limita a reproduzir o que está no prompt: ela explora criativamente suas fronteiras, muitas vezes excedendo as expectativas humanas.
Essa interação revela uma relação dialética. O humano injeta sua criatividade no prompt, e a máquina responde reinterpretando, combinando e até transformando os espaços conceituais envolvidos. Assim, o prompt não é apenas um ponto de partida, mas um catalisador que permite à máquina explorar criativamente, frequentemente apresentando soluções que o humano não havia concebido.
Criatividade como coevolução
A interação entre humano e máquina desafia as noções tradicionais de criatividade como um processo exclusivamente individual. Quando uma máquina responde a um prompt, ela não apenas executa uma tarefa, mas colabora em um processo criativo contínuo. Como Boden aponta, a criatividade envolve não apenas a geração de ideias, mas também sua avaliação, contexto e impacto cultural .
Ao usar máquinas como parceiras criativas, os humanos ampliam o alcance de sua própria criatividade, enquanto permitem que as máquinas se aproximem, ainda que de forma limitada, de algo que podemos chamar de agência criativa.
O Futuro das espécies criativas
Se considerarmos a criatividade como a geração de novidade dentro de um contexto específico, as máquinas não apenas demonstram criatividade, mas também introduzem uma nova maneira de conceber o fenômeno criativo. Como Boden aponta, ainda estamos longe de um modelo de inteligência artificial capaz de transformar fundamentalmente seus próprios espaços conceituais e avaliar suas criações de forma independente .
No entanto, o uso criativo de prompts demonstra como a interação humano-máquina pode transcender as limitações individuais de cada espécie criativa.
Em vez de comparar a criatividade humana à das máquinas, devemos explorá-las como manifestações complementares de um fenômeno maior. Ambas possuem seus méritos, desafios e limitações, mas sua interação promete enriquecer nossa compreensão do ato de criar. Assim, o prompt torna-se um símbolo da ponte entre essas espécies criativas, um ato humano que ativa e amplifica a criatividade da máquina, promovendo uma nova forma de coevolução criativa.
Referência
Boden, M. A. (1998). Creativity and artificial intelligence. Artificial Intelligence, 103(1), 347-356. https://doi.org/10.1016/S0004-3702(98)00055-1